19.3.17

manual de como ser lida

Esse texto não é para ser lido como texto é
Para ser sentido por dentro dos tímpanos como
Um grito em uma almofada
Esse texto não dá pra ser nem texto ele é um
Começo de uma gestação problemática que pode nem
Dar luz que pode nem vir a ser matéria alguma
Esse texto não é meu e nunca seria
São olhares lançados ao mundo que reúno na
Audácia de explicar a vida e não é que eu
Acabo me sentindo mais viva
À medida que entro em um processo de derretimento
Para me tornar arte como faz-se dos vidros e da cerâmica

Esse texto nem queria ser texto era mais
Um produto de algo que não se diz
Por letras
Mas acabou se dizendo
Pois esse é o fim que todos temos enfim que é
Nos tornar um emaranhado de palavras

Mas cuidado que
Minha fala goteja em panela furada
Não é para ele que era e não é para eles e elas
Eu falo do mundo o que o mundo me fala
Mensagem sem destinatário

Pode me ler nas lacunas entre estrofes e me ler
Na métrica desobediente e pode ainda me
Encontrar no afeto ruidoso que transcorre minhas
Palavras mais usadas

O que a escrita tem de mais substancial no entanto
Simplesmente não se lê e é
A relação entre eu e as palavras que não são mais minhas
No instante em que as entrego

Exercício de devolução




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Obs.: Vem livro por aí! <3

metalinguagem

Falar de si e de nós quando ainda
Não somos nós
O contexto dessa relação
Quando ainda importam mais os filmes
Em cartaz
E o desfecho de uma reportagem
E como funciona um aparelho
Quando ainda não somos os protagonistas
Do afeto um do outro
Quando ainda é cedo para colocarmos
Vontades maiores do que simplesmente as coisas levianas
Que queremos e nossos programas para o sábado

Falar de si e de nós quando ainda
Não somos casal
Quando ainda não se tem registro de quem
Está bravo com quem ou
Do próximo presente de aniversário
Quando ainda importam mais as besteiras
Superficialidades e perguntas triviais
Que não respondem o desamparo
De camadas abaixo da questão em si

Falar sobre o espaço que se ocupa na vida um do outro e
Sequer ter os ouvidos afinados a esse tipo
Minucioso de linguagem
Falar em freqüências afetivas
Distintas
Quando ainda estamos nos amando
Secretamente
Por baixo das nossas falas

Falar da coisa em si que nos conecta e do ponto
Que liga todos os outros pontos
Falar do vazio compartilhado que carregamos e 
Das nossas urgências sobrenaturais por cafunés e
Pelo mais profundo entendimento
Falar de nós
Pra nos tornarmos nós
Em um espaço comum

Metalinguagem em que existimos

The living - Collin McAdoo

amores certos

Por mais que eu vá de encontro à intensidade como
Bichinhos de luz vão às suas lâmpadas
Por mais que o seu jeito de dançar tenha esse descompasso
Ritmado ao meu
E isso pareça significar algo
Por mais que tenhamos o impulso de viver amores com displicência
Como as pessoas comuns vivem suas viagens de fim de semana
Por mais que tenhamos um fraco pelo romance despreparado e
Fulminante
Por mais que percamos o gosto por nossos pares como se fossem chicletes
Em nossos dentes
Por mais que eu e você
E talvez mais eu do que você
Vendamos nosso afeto como um produto legítimo a leilão
Por mais que sejamos
Sagitarianos
Eu e você não passamos de amantes sem bom senso que
Só sabem dar um primeiro beijo desenhando roteiros
Que só sabem fantasiar vidas inteiras
Que se afogam em garoas
Que se doem nas lacunas temporais
Entre apaixonamentos

Eu e você só sabemos provocar e até
Atrapalhar
O trabalho do universo em nos trazer
Amores certos
E ele vai condenar nós dois à calma de um amor seguro
Vai trazer a monotonia de um amor verdadeiro
Vai trazer
Vai chegar
Apesar de


Marina Abramovic & Ulay