7.11.16

intermitente

De repente porque caiu um meteoro na avenida principal e a gente não
Chegou a tempo da sessão de repente isso
Põe na minha conta a culpa de ontem somada a essa de agora
De repente porque choveu e meus guarda-chuvas são todos
Quebrados e está na cara
Que eu faço isso de propósito
De repente porque estive usando umas palavras pouco suaves e
Talvez tenha usado um rosto mais triste
No dia do enterro do meu avô
De repente foi a minha demora em terminar um sorvete em
Terminar uma frase em terminar uma respiração
De repente essa culpa nova debitou em minha conta porque
Eu não falei que o amava quando você me
Largou na avenida sem devolver minhas chaves e minha carteira
De repente e provavelmente foi o elogio que eu teimei em receber de uma amiga
E respondi que me sentia amada
De repente é o franzido do meu nariz que invoca o pior em você e
Não dá para tolerar coisa dessa
De repente são os meus acertos na hora que eu deveria estar
Perdendo a cabeça junto com você
De repente tudo isso é faísca nos campos minados em que já
Perdi pernas e braços

De repente amor se desama como
Sopro em dente-de-leão

Explosão intermitente



para-raio

Mas essa garota só atrai gente pirada. 

"Atrair maluco" é um presente. Vem em forma de investimento: enriquece a longo prazo o meu olhar. Digo que atrair essas vivências é experiência do divino, pois me presenteia com o melhor dos dois mundos. Transcende.
Se amanheço trabalho, boleto e checklist, vou dormir céu, pitanga e Almodóvar.
Se debato os rodapés das revistas de fofoca, retorno ao silêncio em devaneios sobre todo o sentido da existência.
Tenho em mim a vitalidade da loucura e o contínuo da normalidade. Tenho em mim a dor das mentes incoerentes e o peso das nucas engravatadas.  
Presenciar loucuras me deu mais lucidez e autenticidade em meu sentir. As verdades neuróticas me deram o contorno. As insanidades me deram as cores para pintar por dentro.
Gente que pisa fora da normalidade é uma benção pra nós, que usamos despertadores, que nos preocupamos com prazos fictícios e toda essa ilusão irresistível da ideia de existir um só tempo. Mania de linearidade.
Empresto um pedaço de mim aos balbucios. Me doo. Aos napoleões e antonietas. Às piscinas de gelatina. Às construções que se comunicam pelos arranha-céus. Aos desenhos que tomam corpo e vida. Às cantorias incoesas e às cenas gregas. Me doo em parcelas ao enlouquecimento com que me criei artisticamente - e ao qual devo boa parte de minha consciência emocional. A gente se reconhece na loucura dos outros. A gente se reintegra dentro da nossa.

Enlouqueci no morninho da vida: pipoca só estoura no fogo.



14.10.16

amorfo

Eu tenho o eco da vida nos olhos e tenho
Um milhão de melodias
Que andam comigo em câmera lenta
Tenho em mim
A riqueza dos planetas
O formato do diamante eu tenho
E tenho a história dos monges eu
Tenho a vivência de poucos e tenho
Ouro na minha saliva

Você tem o oco que a gente
Preenche com a minha voz você
Tem o nós que eu criei com os meus
Calos de artista

Eu o amei amorfo
Pra compor sua história dentro da minha

Ilustração por Fernando Cobelo.

baú

Talvez o que mais doa em uma escala
Não-numerada
Seja um pouco do que eu senti hoje
Talvez o que eu sinta seja a evolução dos
Dedinhos nas portas
Da canela na quina
Talvez seja a acidez do estômago elevada à
Vergonha de estar nu no maracanã
Talvez tudo isso doa
Um pouco do que eu senti hoje

Não está para um tiro na perna e antes fosse
A dor parece
Uma descoberta de que você entendeu a vida toda errado
Um monólogo de um protagonista substituto sem
Carisma

Uma farpa no olho e ainda seria
Uma dor melhor do que a de hoje

[Passa]

dezenove

Hoje eu dormi pra esquerda e foi assim
Que uma pedra tocou na outra
Veio a lembrança e a gente não sabe muito bem
Como isso acontece mas
Vieram os dias que eu voltava
Com purpurina nas mãos tilintando moedas
Na fila da padaria junto a pessoas de vidas mais extensas
Amores bem vividos e cartões para bater na hora certa
De gente que trabalha aos domingos
Vinha bambeando em minhas botas desejando ter
Um corpo apenas para me apoiar um corpo de voz baixinha pra
Telefonar e saber se cheguei em casa bem e eu acordaria só
Pra dizer que sim, ensaiaria até mesmo um
Cheguei, meu bem
Pra que ele dormisse tranquilo com meu perfume entre os dedos

Hoje eu dormi desse jeito que evocou alguma coisa e 
Foi assim que veio um frame daqueles dias
Que eu voltava pra casa na hora da missa dos meus 
Vizinhos e tirava os sapatos ainda no asfalto eu
Não tinha esse discernimento eu nunca
Tive paz
Era tempo de ter muitos amigos, eu tinha
Era tempo de achar que um último amor era
Realmente o último
Era tempo de deixar minha mãe preocupada com os ônibus
Que eu pegava com as companhias que eu cismava que eram gente finíssima
Amizade duradoura desde o fim de semana retrasado

Eu dormi sem saber se fui feliz ou triste e realmente
Não saberia fazer essa conta mas despenquei
Como dormia de volta pra casa nos taxis
Com a tranquilidade e a melancolia de quem ainda tem
Três quartos de século pela frente

Eu só não tenho dezenove anos





1.8.16

terreno

Já tem mais de mês eu pulei esse muro estive
Com os joelhos ralados expostos
Com as unhas nas cascas como em tampinhas de
Refrigerante
Já tem mais de mês eu já esqueci qual
Mês eu voltei pra cair de joelhos no concreto
Deixar tecidos da minha pele naquele jardim dos mais
Férteis
Pra nascer de mim outras de mim que falam o meu indizível
Em folhas e galhos que crescem desgovernadamente além
Do meu tamanho

Já é mais de um mês e eu volto com todo o meu constrangimento
Pra podar as folhas que deixei secas raízes famintas e
Mudas
Com minhas cicatrizes já fechadas sem o menor jeito sem a menor fé
Mês depois volto para verificar as condições do solo e
Colher quase nada que cultivei nessa estação de
Poucas palavras

Já é outro mês e não vem uma chuva pra me molhar as bochechas uma
Perda de fôlego qualquer que me atravesse até se transformar em
Palavras embaixo da minha língua
Com a boca vazia mês vai mês vem retorno para enterrar
Páginas vazias

Já tem meses e eu não
Consigo
Sentir


--
Eu chamo de fazer uma limonada - escrever sobre a não-escrita. :)


21.6.16

poeira de estrela

Batata frita pra dois. Refrigerante em refil. Sal pra ele, mostarda pra ela.

Sentei-me no restaurante ao lado do casal. As mesas eram tão próximas que era quase impossível não mergulhar nas histórias de vida, viagens, debates, na sordidez dos detalhes, no golinho do milkshake, fecha-a-conta, beijinhos de despedida. Todos perto, como em uma grande mesa de natal, parentes distantes e vizinhos cujos nomes não lembramos.

O casal era agora meu ouvido direito. Meu pé direito, o furinho na manga direita do casaco. Colei mais perto do que gostaria.

Tentei pensar no curso que acabara de fazer, na programação do dia, mas me vi imersa naquele casal por pelo menos duas horas.

Ela falava, ele ouvia.

Ela contava histórias longas, ele assentia.

Com sorte, ela punha um "né?" ao fim da frase  - dava tempo de ele murmurar e sorrir com os olhos.

O hambúrguer era dele, o vegetariano era dela.

Ele era dela, também. Cada milímetro de seu ser dedicado àquela existência; devoto ao relato de sua ida à copiadora, ou à casa da avó, ou do seriado que começara a assistir sozinha.

Brincaram de sério, perderam juntos, rodadas a fio. Desempataram quando ela testou uma cara esticada de "plástica". Ele riu bastante alto. Pude ouvir sua voz, acho que pela primeira vez, já em minhas últimas batatas fritas.

Ela pagou a conta. Dinheiro do estágio. Ele estalou um beijo em sua testa. Passos ruidosos e braços longos, de ombro a ombro, naquele andar conjunto de quatro pernas.

Fiquei órfã naquele instante. Espreguicei o corpo. Em um espaço estranhamente amplo, pude me perguntar se era ela a estrela do casal. Ou se era, ao menos e por que não, o dia dela de brilhar naquela constelação de dois.

O amor é esse presenciar, silencioso, do nascimento de uma estrela.
A admiração e o sentimento de sorte.
A constatação de estar rico por dentro, abastado, invencível.

Digeri. Paguei e fui embora a pé, desnorteada. Comi essa poeira.

No céu de quem a gente brilha?

palanque

Quando pequena
Em nossas viagens de carro
Caetano soltava absurdos
Pelos autofalantes
"Ele é quem quer
Ele é o homem
Eu sou apenas uma mulher"

Minhas irmãs cresceram
Feministas
Eu cresci fêmea
Entendi pelos Caetanos
Que eu era
Apenas

Vieram os roxos
Engasgados
Vieram as loucuras
Induzidas
Vieram os moços, e muitos
Vieram as feministas

Eu me vi
Caetana
Ao dizer das mulheres loucas
Ao dizer das mulheres frágeis
Ao dizer das mulheres
Eu apenas me ouvi
Calada

Fizeram pouco de mim
De minha história
Extraíram a cientista inventora artista
Fizeram de mim a namorada
Em uma morte horrível
Morri fulana
Mulher de alguém

Duvidei de meus pés pequenos
De fêmea
Pra pisar pequeno no mundo
Pra não acordar os gigantes

Mulher existe miudinho

9.2.16

falência

Esse amor está me custando caro
A cara
Homeopatia terapia telefonemas longos
Está me custando tempo
Trinta e dois momentos
Para um resíduo de memória

Esse amor está me custando parcelas
De vida
Arrasta demora dúzias muitas
Custa um quarto de dia ou um ano bissexto
Duas semanas
Custa saúde e combustível
Explicações

Esse amor está tributado está
No seguro
Poupança que a gente esvazia
Pra comprar um punhado
De areia
Pra comer do vento mais barato
Pra reservar um milésimo
De uma formiga

Esse amor está sendo
Desvalorizado
Está me custando cruzados cruzeiros
Escravos e
Escambos

Esse amor está me custando outros
Amores
Possibilidades
Está me fazendo pobre está
Em migalhas e trocados

Esse amor comeu o meu tempo